terça-feira, 23 de outubro de 2012

UM ENCONTRO COM GNOMOS

UM ENCONTRO COM GNOMOS

Carlos Ângelo Tortelly Costa





REALISMO SUPOSTAMENTE FANTASIOSO



















































Agradeço:



Aos meus pais:

Por me ensinarem a ter um carinho precioso.





Aos gnomos:

Pela confiança e por tanto que me proporcionaram.





E a todos aqueles que sentiram minha ausência por um período de entrega total a estes seres e ao livro.

















1



                  Marias-sem-vergonha margeavam uma bucólica trilha desconhecida. Caminhava com passos inseguros, mas a senda continuava firme, sinuosa e linda. Quereria alcançar uma pedra no rio que me chamara atenção por localizar-se na entrada de uma floresta virgem. Não sabia se poderia. Era uma pedra diante de uma linda floresta virgem. Reconhecia não ser uma tarefa muito fácil, mas pulando de pedra em pedra pelos entremeios do rio conseguiria chegar aonde queria. Depois, sentado nela com alma serena, resgataria momentos subjetivos percebidos pretensiosos: parecia-me dirigido por uma sociedade que não me deixa entender a vida; propósitos encaminhados para tornar-nos feliz eram substituídos por compulsões que nunca satisfazem. E algo nisso me intrigava. Andava dedilhando esses meus momentos quando... Chegando próximo. Reparei que aquela floresta virgem, densa, bem fechada e digna de ser apreciada causava espanto. Vinha-me a certeza de ser um local misterioso. Um emaranhado vivo, indistinto, tomava-a completamente. Era formada por árvores antigas, altas, troncos grossos e copas bem fechadas, de cujos galhos pendiam barbas-de-velho dando-lhe um aspecto fantasioso e convidativo. Parecia um contrassenso. Um rio rastejando singularmente, com suas águas claras, límpidas, vindo por uma entranha da floresta escurecida, parecendo querer fugir daquele implexo. Rio e mata formando um conjunto contraditório, mas harmonioso, que encantava minha sensibilidade. Tornavam-se dignos de receio, provocando curiosidade. Sobrepujando meu propósito, resolvi conhecer mais intimamente aquele irresistível mistério que floresta e rio sugeriam. Naquele momento crescia no meu espírito lembranças obscuras, mas encaminhadas para o bem. O perigo existindo numa grandeza sombria, mas purificado pelas águas daquele rio escapando de um “jardim de delícias”. Uma vida intensa e desconhecida implicava em múltiplas facetas. A insegurança de um futuro ou de um passado de dúvidas hesitava diante dos percalços que independem da nossa própria certeza.

Naquela hora, o interior daquele labirinto, aparentava um — entardecer quase noite — apesar de ser manhã. Poucos raios de sol ali penetravam. O movimento das águas do rio refletia cores douradas, propiciando uma luminosidade nas pedras que as faziam aparentar como preciosas fossem. Suas margens impressionavam por mostrar tantos espectros dançarinos. Ali, tudo parecia ter vida ativa tornando sinistra, mas sugestiva, qualquer ousadia imaginativa de cometer a indiscrição de conhecê-los. Reparava que os pequeninos peixes coloridos nadavam suavemente lembrando-me estar diante de um aquário lindo, tido eu, e que fora numa certa época, alívio para distrair uma alma ainda inocente, suplicante por uma expectativa de vida que se esperasse com otimismo, mas com as incertezas já percebidas. Diante do silêncio aparente, meu receio era grande. Parecia existir um sentimento cuidadoso, que naquele pé ante pé, de entra não entra, me acovardava. Minha alma então foi serenando como a um pesadelo definido que venha se tornando inexpressivo. Não restava dúvida! Formou-se um momento mágico e encantador! Cada impulso que eu tinha de dar mais um passo, sentia-me no risco de um lumiar... Parava então. Refletia... Era a expectativa de um resultado inesperado. Reparava o vôo suave das borboletas, mas momentaneamente realizavam um movimento tão translouco, que a visão quase as perdia; todavia, aquele rápido movimento não impedia que o repente desfizesse a harmonia do seu rendilhar. Seus estalidos faziam parte de uma orquestra que não interferia no sossego daquele momento. O xuxurrar do correr das águas parecia ser um grande falatório de lavadeiras cumprindo seus deveres de há tempos. Trinando os pássaros, junto a outros ruídos, integravam-se no mesmo som de uma sinfonia de chiados, pios, zunidos e estalidos num renrém que eu não conseguia entender como tudo se harmonizava. As cigarras pareciam querer atrapalhar, mas coitadas, não destoavam com seu zunir estridente e a nuança de seus acordes nos vai e vem. Os grilos cumpriam marcação de ritmo muito próprio. Os galhos arrastavam-se suavemente uns nos outros, proporcionando um rangido de rodas de carros de boi que me retornavam a outra ocasião de minha infância. O local ficava ainda mais espantoso. Provavelmente ouvia sem percebê-los, muitos outros sons que existiam por ali. Deveria ouvir o som da rotação e translação da terra, o murmúrio imperceptível do universo se movimentando em sua própria expansão. Qual silêncio... Reparado. Sentido... Pois barulho mesmo igual ao das cidades grandes não havia ali, e este sim, seria o que mais deveria assustar a qualquer um, mas jamais o novo passa a ser um costume.

Acabei sentando naquela mesma pedra, que aparentava ser a menos desaconchegante. Naquele momento, sim, procuraria serenidade. Cobraria um senso que ajustasse minhas ideias, ficando atento a este tempo. Necessitava recolher-me a mim próprio para não encorajar meus pressentimentos.



2

Saí do devaneio reparando uma grande formiga que se dirigia a meu pé. Tentei com a força de meu pensamento desviá-la de seu caminho. Percebi que era em vão e que eu não tinha esse poder. Com um pedacinho leve de piaçaba comecei a brincar com ela. Notava na sua expressão o ódio que ficava da tênue parte da palmeira que interferia no seu caminhar. Estava interessante notar a sua raiva que ia aumentando a cada espaço de tempo. Irada, já quebrava o galho com a sua tesoura afiada a cada estocada de fúria e irritação contra aquele alvo perverso, que a importunava. Afinal eu que sem paciência, lanceia nas águas do rio, mirando-a em seu nado, até abstrair-me totalmente daquela circunstância. Com a atenção voltada para a orquestra perfeita daquela floresta, ouvia os sabiás, os tico-ticos, melros e tantos outros, cada qual com seu trinar. Os estalidos das borboletas, o zunir das cigarras trapalhonas e o bater das azas dos “Beatles”. O som da correnteza com suas lavadeiras falantes, e o das “Rolling Stones” e o arrastar dos galhos da mata. Não poderia deixar de prestar atenção na sutil mágica com que a vida nos surpreende e nem deixar de agradecer a estas maravilhas que sempre deveriam se apresentar em palcos e fizessem momentos ternos por toda a nossa vida.



3

Percebi a real magia de um local encantado. Estava atento a quaisquer coisas que poderiam acontecer. Minha surpresa quase me faz tombar no rio e arremessar também o gnomo que inesperadamente surgiu em minha frente; em momento de abstração, senti a altura da bainha da calça, puxõezinhos leves que me chamaram atenção. Quando olhei e vi exatamente o que era... dei uma contraída na perna, que deu no que se deu. Deveria ele ter uns trinta centímetros de altura. Imagine eu, num local supostamente assombroso como já descrevi, não estando no meu habitat natural e, repentinamente, deparar com um ser aparentemente humano, daquele tamanho; feições abrutalhadas que o tornava bem feinho. Ainda por cima, usando um chapéu esquisito na cabeça: a sensação que senti? O resultado foi que quase paramos os dois dentro do rio. Consegui, não sei como, acalmar-me prontamente. Ainda com algum receio, mais por sentir-me culpado, fui ajudá-lo a sair daquela maneira incômoda que se encontrava. Ajoelhei e ofereci minha mão para a sua, a que estava solta, para tirá-lo daquela posição: dependurado na pedra apenas por uma das mãos, e o resto do corpo pendido para direção do fundo do rio. Tinha uma agilidade como a do vento e mãos tão macias quanto a de uma donzela que só ao casamento espera. Na sua pressa em sair daquela situação, passou a falar muito rápido e de tal forma tão atrapalhado, que não entendi absolutamente o que pronunciara. Além disso, tive a impressão que usava um erre no lugar de dois erres, com o mesmo vício de linguagem de algumas pessoas daquele Vilarejo. É interessante que alguns habitantes dali, por suas feições brutas, suas maneiras de falar diferente, seus chapéus surrados e estranhos e outros detalhes a mais, que somente vendo, também aparentavam como se fossem gnomos grandes. O gnomo, me pegando de surpresa, por eu não saber quem estivesse mais atrapalhado, fez sinal com as mãos que eu o esperasse e instantaneamente sumiu deixando um rastro que me aparentava ser de purpurinas ou estrelinhas prateadas, surpreendendo-me mais uma vez.



4

Além de estar naquela floresta assustosa, quando eu adolescente já havia lido alguns bons livros: “O Apanhador no Campo de Centeio”, “O Pequeno Príncipe”, “Fernão Capelo Gaivota”, alguns livros de yoga, vários do antropólogo Carlos Castañeda; Monteiro Lobato; As Grandes Alucinações de “Alice no País das Maravilhas” e outras fábulas de “O Mundo é da Criança” e “Tesouros da Juventude”. E por estas tantas leituras, achei que tinha acabado de ter um lapso de contemplação de minha fértil imaginação. Por todo aquele esplendor presente e com aquelas leituras, que provavelmente fariam bem ao desenvolvimento sutil de um rico e sorridente espírito criativo, fiquei com dúvidas quanto à veracidade do fato. Um evento que só poderia sobrevir ali mesmo: num lugar tão fantástico...



5

Coloquei a minha imaginação dormitando e entrei na real quando vi, aquele excêntrico gnomo, subir na pedra acompanhado de outro que me parecia mais velho. Bonequinhos andantes, bonitinhos por seus tamanhos, feinhos por suas aparências grotescas, fazendo que nossos pensamentos e nossas razões borbulhassem de incertezas. Completamente perplexo olhava para eles demonstrando talvez minha total insegurança em relação aos fatos. Se as estórias eram histórias, se os contos eram verdades, isto eu não mais tinha certeza. Estava incrédulo diante do que poderia acontecer a cada momento: ali, agora e para sempre... Minha interpretação da vida com absoluta certeza mudaria. Que figuras eram aquelas?...

O gnomo mais velho se apresentando disse chamar-se Olégna. Dirigindo-me palavras em tom de voz natural, escutava-o entendendo perfeitamente tudo que dizia. Percebendo não ser iludido por minha imaginação; falei:

— Como pode, eu nunca tê-los visto por todo este tempo? Só ouvido falar de vocês por tão grande espaço que é uma vida? Por que agora? O que querem de mim? Pensava que poderiam não existir! Que fizessem somente parte de uma estória de caçadores!... Mas assim mesmo cria em vocês! Pois já tive até relação de pedidos reais com gnomos. Só não sei se eram vocês mesmo: na beira de outro rio e sempre do mesmo local, eu pedia com fé. Faziam acontecer. Naquela época eu não os via. Fizeram acertar por treze vezes. Por falta do próprio agradecimento fiquei com vergonha e não mais apareci para estar.

Ele retrucou:

— É hora de nos vermos para trabalharmos. É muito difícil acreditar em vocês que se dizem humanos. Até que nos provem ao contrário. Então caem em nossas graças. Por exemplo: você vem sendo observado por nós durante muito e muito tempo e por diversos motivos ganhou nossa confiança. Éramos nós mesmo que lhe atraíamos para lá, para aquele ponto. Até que decidíssemos este encontro natural.

Falava isto pausadamente e quase sem gestos, talvez para não me assustar. O outro ficava ao seu lado, em silêncio. Eu falei quase gritando: NATURAL!?

Ele continuou após ter dado um sorriso.

— Eu tenho trezentos anos. Não sei se você reparou nos traços do meu semblante. Não moramos aqui na superfície do planeta. Temos várias cidades e uma infinidade de civilizações constituídas por todos esses continentes. Cada uma delas fazendo-nos variar um pouco com os costumes, mas não com as nobres tradições. Vivemos numa parceria muito mais simples que a de vocês e nem imagina a organização que uma sociedade quase perfeita possa ter. Aprendemos a andar com um ano, ler com quatro ou cinco anos: igualzinho a vocês! Também nascemos sem muita experiência, se não, as que viermos com elas em nossos genes. Depois, por aprendizados dirigidos e muito bem elaborados por nossa sociedade, passamos durante a vida a adquirir capacidade pra realizar o que quisermos com nossos próprios átomos. Podemos até subdividir o núcleo e mudar certos ângulos da órbita de algumas das nossas camadas atômicas, não com os muitos trilhões que nos formam, mas somente com os átomos necessários para que realizemos cada caso em si. E muitas vezes, pressionando simplesmente um ponto de nosso chakra por alguns minutos, fazemos que aconteçam coisas surpreendentes. O que para nós, se torna muito fácil diante do que se adquire com os aprendizados dirigidos. Pode ir relaxando e se acalmando, porque este nosso encontro é para o bem.

— Estou admirado! Vocês existem mesmo!

— Bom!... Assim, com muita aplicação nos estudos, ficamos com uma capacidade do poder muito grande. Se quisermos vocês não nos percebem, apesar de muitas vezes estarmos nas matas ou nos jardins quase junto de vocês. Nós gnomos somos todos assim. Podemos também ir a outros “planos astrais”, convivendo em outras dimensões, e então, passamos a conhecer “elementais” diferentes, e até, alguns bem mais astutos do que nós. Essa atividade sempre a praticamos. Seja como aprendizado ou divertimento. Chegamos muitas vezes a arriscar os limites de nossas próprias vidas, indo até onde não deveríamos. O que já passa a ser travessura, a qual não é sugerida. Adquirimos poderes de ter intercursos com os “elementais da flora”, assim como, com os “espíritos da fauna”; não só pela configuração genética de nossos tantos neurônios, nossos estudos, como também por nossa finíssima sensibilidade adquirida com nossa longevidade. Temos o poder de saber o que vocês pensam e a maneira como se portarão, dependendo da situação. Se eu quiser acompanho-lhe vinte e quatro horas por dia sem sair de casa. Nós podemos obter a ajuda dos “elementais da flora da natureza”, também de todos os outros seres, como os “encantados” ou até qualquer outro “Elemental” de “outras dimensões” que possam, até, existir entre o céu e a terra. Apreciamos muito a evolução da inteligência de vocês, apesar de terem ficado muito atrasados, por se contentarem com o supérfluo e o superficial. Não atentaram ainda para o verdadeiro desenvolvimento das forças que existem em nosso interior. Aliás, no momento só estão fazendo bobagens sérias com esse desenvolvimento de vocês. Até me desculpe pelo que ainda vou lhe narrar daqui para frente, pois vai cair em si gradualmente, se nos der tempo. Se acalme. O pior de tudo é que está se tornando difícil de manterem-se vivos por muito mais tempo. Basta continuarem desafiando a rica natureza do planeta de uma maneira brutal como vêm fazendo, por terem caminhado naturalmente por um desenvolvimento completamente sem cabimento, devido ao caráter guerreiro que desenvolveram. Principalmente, praticando a retirada indiscriminada do petróleo, que coincidentemente, o mistério da vida o colocou onde deveria, proporcionando um clima apropriado na superfície do planeta para o desenvolvimento dos átomos, que se tornaram células e formaram a nossa natureza de hoje. Ocasionando oportunidade de todos nós termos nascido. Não deixem para percebê-lo, quando não mais for possível a sua recuperação. Também o utilizam mal, na queima para energizar esse desenvolvimento mecanicista que foram levados a optar. Ainda bem que os fenômenos surpreendem pela lei das “causas e efeitos”. O planeta vem se superando de acordo com suas necessidades. Até quando? Não saberei lhe dizer! Ele se sujeita aos efeitos, independentemente da sua natureza. Mas o complexo dela... É lenta sua recuperação. E a reposição do petróleo impossível.

Disse-lhes, então:

— Gostaria de um tempo para recuperar a explosão que acontece em minha cabeça e em meu coração! Você fala... Fala... Fala... Sem parar. E eu preciso perceber realmente essa realidade. Considero-a fantástica. Desejo saber sobre vocês, seus poderes e o que sabem, para aproveitar em pró do nosso desenvolvimento, se assim nossa sociedade quiser. Para mim, se torna difícil compreender isso tudo que está acontecendo numa real situação. Todo esse contesto está me deixando perplexo: a emoção de perceber uma linda floresta perigosa, rasgada por este rio amansado e tranquilo, o aparecimento de vocês, e ainda ter de ficar prestando atenção na vossa filosofia. Há em mim uma necessidade de reflexão para poder absorver toda essa realidade.

Continuavam me olhando com seriedade... Falou que eu tinha razão. Aproveitariam o meu tempo necessário para solucionarem algum problema a resolver e que os aguardasse, pois voltariam no tempo certo. E se por acaso, nesse ínterim, aparecesse alguém, não tocasse no assunto sobre eles. Pois, por enquanto gostariam que esse encontro se tornasse um segredo entre nós.



6

Entraram floresta adentro. Eu refletia sobre tudo que estava se passando. Percebi o que pretendiam dizer sobre a divisão dos núcleos atômicos. Tentei lembrar Castañeda nos seus livros falando sobre “Don Juan e Don Genaro”, dos desaparecimentos e aparecimentos instantâneos deles em locais completamente diversos. Realmente não consegui lembrar se explicava ou não o fenômeno. Existia o uso do peyote para ajudar nas multiplicações de suas presenças. Paramahansa Yogananda, grande e tradicionalmente yoga, competente até para trazer a própria yoga para o ocidente, também falara no assunto, e, se me recordo, afirmara que isso era um efeito físico de completo domínio da mente sobre o corpo físico. E não se tratava de um acontecimento espiritual, como muitas pessoas pensam.

Algum tempo depois, quando voltaram, disseram que iriam necessitar de mais um tempo. Já me enfastiavam todas aquelas circunstâncias. Continuava perplexo e com a mente completamente titubeante, até por estar com fome. Precisava sair um pouco para a civilização do Vilarejo, dar uma volta, espairecer e comer. Eu queria ajuizar aquilo tudo: a situação de estupefação diante do aparecimento de gnomos na porta de uma floresta encantadora. E, já não mais sabia se era porta ou portal, que aquele local me proporcionara.

Estava hesitante pela incerteza de não saber se continuariam a aparecer. Sentia-me numa posição complicada e insegura, até por não poder dividir o fato com ninguém. Não teria com quem trocar opiniões. Colocaram-me em mais um momento difícil da vida.

Próximo do sítio havia um comércio que satisfaria o meu sentimento da fome. Era novo o local. O proprietário optou em fazer comida caseira e eu precisava dessa satisfação. Meu amigo tinha acabado de inaugurá-lo na sua própria casa de moradia. Cantinho simpático com comida trivial. Sentei-me numa das mesas da “Casa do Aipim”. O dono, que curiosamente se chama Marciano e tem como apelido Cecé, sentou-se comigo. Perguntou se eu quereria beber algo. Respondi que no momento não iria querer nada líquido. Minha curiosidade era o que ele teria para comer, isto sim. Marciano tentava puxar conversa comigo, mas eu estava taciturno, com o pensamento longe, devido ao fato ocorrido na floresta. Acabei, no meu silêncio enternecido, almoçando feijão, arroz, galinha ensopada com quiabo, mandioca, abóbora e uma salada de alface, tomate e cebola. Tudo colhido de sua horta e retirado de seu galinheiro, a céu aberto. Criando galinhas sem ração, com verduras, legumes e temperos, sem defensivos. O máximo dos máximos e era o que precisava naquele momento. Tudo estava uma delícia, também por estar com o “tempero do rei”, a fome; mas a comida estava gostosa mesmo. Despedi-me logo após ter almoçado. Ainda queria ir ao centro do Vilarejo, o qual, aquele meu sítio pertencia, e que, já amava tanto. Marciano exclamou quando eu ia saindo:

— é Anjo... Assim a maioria das pessoas do Vilarejo dirigia-se a mim. Você hoje está calado!

E eu respondi:

— Pois é! Existem ocasiões na vida que nos obrigam a sermos mais circunspetos, devido às circunstâncias! Ele não deve ter entendido a resposta. Caminhei até o centro do Vilarejo sorrindo por ter deixado no ar a tal resposta.

O centro do Vilarejo era o único local cujo piso da rua era calçado com paralelepípedos. Este calçamento tinha mais ou menos uns cem metros de comprimento. Tudo proporcionalmente pequeno e lindo. Num dos lados da rua há uma escada em aclive que leva a uma igrejinha de uma torre só. Muito simples e pintada nesta ocasião com a cor mostarda. O gramado bem aparado e florido a sua volta, complementa a beleza e a serenidade do local, exatamente como os párocos aprendem a locar estas construções para aparentarem como a grandeza do propósito que lhes é conveniente. Por detrás dela um cemitério bem caiado com sua capelinha mortuária que atende a toda região. Também há uma escola da prefeitura, com pintura de bom gosto, que só o primeiro grau ensina, e todas as crianças das séries na mesma sala, tendo aulas no mesmo horário, com o mesmo professor, o que eu não consigo compreender como aquilo seja possível. Há também um armazém acoplado a um bar. Mais umas três casas de residência. Na mesma calçada da rua fica a casa do Naldinho, habitante do Vilarejo que aparenta muito com os gnomos. Do outro lado da rua e no correr do calçamento mais umas quatro casas, inclusive a da senhora Edwige, que no momento, é a pessoa mais idosa do Vilarejo. Já se faz alguns anos que comprei um terreno na beira do rio a dois quilômetros do centro do Vilarejo, resolvendo eu mesmo fazer a casa. Pensei naquela ocasião: por aqui tem tantos aprendizes construindo por quererem largar a profissão de lavrador, porque não posso eu mesmo fazer minha própria casa sem ser engenheiro? Quando da ida às lojas comprar material para a construção, sempre tinha lá um mestre de obra a quem eu perguntava: como se faz isso, como se faz aquilo? E assim fui construindo, ouvindo muito bem as ideias do seu Antônio a quem eu comprara o terreno e tinha certa experiência, pois sempre havia construído as suas próprias casas. Derlinho, filho dele, garoto novo e com disposição de roceiro, era meu ajudante de obras. Pela primeira vez na vida esquadrejei um terreno, fiz uma fundação e assentei os tijolos. Fiz todas as portas e janelas. A construção do telhado, eu empreitei para um mestre, e participei como ajudante, pois é mais complicado e era uma oportunidade de eu aprender mais alguma coisa. Toda a parte do acabamento também foi entregue para pedreiros do local já com alguma experiência. Linda ela ficou. Assim todos falam. Fiz bem pequenina, porém muito bem dividida, ou melhor, sem divisão nenhuma.

Achei que poderia encontrar com o Comandante no centro do Vilarejo. Eu me identifico muito bem com ele, que também é sitiante do local. Tinha um conhecimento de vida interessante para conversarmos, e um jeito de ser que eu gostava, não só pela sua inteligência, maturidade no falar, como também por ser ele bem eloquente. Quando bebe então, cresce e vira um gigante nas gesticulações colocando muito bem o seu ponto de vista. É uma pessoa prestativa e gentil. Reformado pelo exército que servira, na fronteira gaúcha. Fala de um livro que está escrevendo, mas não consigo entender a física da tal partícula que ele descobriu, acho que no espaço, ou, não sei se é uma estrela ou planeta inteligente... Não o achei lá pelos bares. Conversei um pouco com o Chico, proprietário de um dos armazéns. Bebi umas duas cervejas fazendo hora e voltei para casa.



7

No outro dia bem cedo parti para floresta. Como era meia estação e o Vilarejo fica a uns oitocentos metros de altitude, fazia uma manhã que poderíamos dizer “tipicamente londrina”. O nevoeiro era intenso, garoava e não se enxergava quase nada. A garoa tornava a roupa úmida e fria. Eu estava vestido adequadamente com uma camiseta de mangas compridas de malha fina, por cima desta outra camisa de lã e também um pulôver. Calça de malha, tênis e uma capa fina de nylon com capuz. Fui andando pela linda picada margeada por Marias-sem-vergonha, também pulando de pedra em pedra com muito cuidado, até chegar à pedra da entrada da floresta que continuava sinistra e rasgada pelo rio domado pela topografia. Não tinha a mínima noção de como chamá-los. Sentei naquela pedra úmida. Continuava tudo curiosamente espantoso e lindo por ali. O som natural da floresta era bem menor que o de ontem. A orquestra tinha bem menos componente. Somente o sabiá preto solava um canto de ninar adulto que poderia tornar a quem o escutasse alegre ou triste, dependendo do estado de espírito. Nada me tiraria o prazer de escutá-lo naquele silêncio. O som do rio e sua aparência mais uma vez complementavam a beleza do momento. Mas a floresta continuava sombria, sinistra e fantasiosa.

Não demorou muito os dois apareceram. Com as feições muito grossas, tornando-os feinhos e ao mesmo tempo achava-os lindinhos por estarem bem vestidos e terem aquele tamanho. Uma botinha que parecia ser de camurça, uma calça comprida de malha verde grudada nas pernas, uma linda camisa de mangas compridas estampada de xadrez puxando para o verde e um chapelinho bicudo, com o tecido muito parecido com o da botinha; o outro também com uma vestimenta sugestiva. O tecido das roupas dava a impressão de ser luminoso e opaco ao mesmo tempo, mas eram muito lindas as vestimentas. Era nítida a facilidade com que estes tecidos mudavam de cor. Pareciam feitos com peles de animais que tendiam ao mimetismo. Daí, a dificuldade de vê-los: se o propósito não for muito atento ou se eles não quiserem que venhamos a vê-los.

— Manteve o segredo que lhe pedimos?

— Olá, tudo bem com vocês. Estou contente por terem aparecido. Fico muito grato pelo crédito. Não falei com ninguém, não foi isso que vocês me pediram? Fiquei foi singularmente curioso para saber mais a respeito de vocês. Muito bom aparecerem. Estou feliz.

— Ângelo, Está tudo bem. Vais saber muita coisa sobre nossa gente e nossos hábitos. Mas, você já ouviu falar no Júlio Verne?

— Escritor? Sim. Já li alguns livros escritos por ele. “A Volta ao Mundo em Oitenta Dias”, “Vinte Mil Léguas Submarinas”, “Viagem ao Centro da Terra” e “Paris do Século XX”, pelo que eu me lembre. Neste último livro, que revertia o otimismo do desenvolvimento para um lado depressivo, por supostas superpopulações e um trabalho que se torna estressante demais. E por isto, fazendo com que a vida não tivesse muito sentido nem prazer, e ainda, por uma possível falta de alimentos no mundo. E, realmente, é o que vem acontecendo nos dias de hoje.

— Espere um pouco. Dê-me sua licença. Chegou onde queríamos que chegasse. O nosso povo vive lá abaixo do solo de vocês. Fomos nós, gnomos, que demos a Júlio Verne, Dodgson e outros os argumentos de seus livros. Eram pessoas especiais, mas Júlio Verne escutou como ninguém, sobre nós, nossa experiência e o nosso mundo. Contou sobre o de vocês, o que nos fazia rir muito e também já a nos deixar apreensivos. Levamo-lo para conhecer o nosso mundo e tivemos oportunidade de conversarmos sobre os submarinos que já havíamos feito para exploração de nossas águas: os aquíferos. Ele então idealizou o Nautilus do Nemo. Conversamos sobre os dispositivos de propulsão a ar contínuo, propulsão a vapor, falamos e mostramos a ele nossas naves interplanetárias com que brincamos muito com vocês. Sobre este assunto preferiu não falar, ou havia outras coisas, cabidas ou não a ele. Conversamos sobre a atenção que precisavam ter pelos desníveis sociais, que num futuro ocasionaria problemas sérios. Convidamos para conhecer um caminho por onde levaria a uma de nossas cidades, mas chegamos à conclusão que os humanos não poderiam saber exatamente onde se encontravam. Ele até poderia dizer que foi lá, mas deixando sempre uma dúvida. Curiosos ignorantes e dominadores como vocês são, o que seria de nós? Naquela época, então, não poderia nem nos mencionar. Enfim, a ignorância era, e sempre será tão atrevida!... E ele foi muito correto conosco.

— Deve ter, com certeza, um caminho para a cidade de vocês por aqui por perto?

— Se tiver que saber, ainda não é a hora. Temos muito a conversar ainda. Temos muitos fatos a lhe narrar. Assuntos sérios e curiosos também. Vamos tentar lhe mostrar alguns truques que o tempo e a nossa ciência voltada para nosso interior, nos fez aprender. Vai entender por que você nos interessa no momento. Vai se divertir também. A troca é boa. Você não precisa se preocupar com nossos desaparecimentos repentinos. Vamos fazer e terminar um trabalho importante para nós e para vocês da superfície. O que não será tão rápido assim...

Sumiram. Explodiram e sumiram os filhos de uma mãe. Explodiram e sumiram deixando lindos rastros brilhantes e coloridos. O outro gnomo não fala nada. Fica quietinho, só prestando muita atenção. Até agora não sei se aquela barafunda que me falou no susto, quando da primeira vez que nos encontramos, era nossa língua ou não. Não acredito que esta pequena, mas enorme realidade esteja acontecendo comigo. É completamente surrealista. É incrível e inacreditável. Formidável... Formidável... O meu comportamento também me surpreende muito, deveras. Alguém do Vilarejo passou lá do outro lado e me cumprimentou. Entendi então por que haviam explodido



8

Percebi, após ter levantado, como eu estava doído e moído. Reparando tudo a volta, notei que a neblina tinha desaparecido. O dia estava esplendoroso, igual as minhas ideias. A orquestra da floresta estava vibrando ao todo tímpano. Já sentia calor com toda aquela roupa. Comecei a tirar a capa de chuva e em seguida o pulôver. O dia havia esquentado. Resolvi me banhar nu. Com essa travessura me sentia livre e a minha alma polida. O local me proporcionava esta oportunidade. Mesmo sabendo que a mata tinha olhos, arriscava-¬me a alguma gozação. Que delícia estar naquela água gelada. Ficava nadando contra a correnteza, literalmente, mas esperançoso sobre tudo que poderia acontecer. Entrei num correr de água que passava entre duas pedras. Ali, exatamente naquele local, devido à formação e inclinação geográfica a água desce forte. Existe uma pedra submersa para apoiar o pé. Outras duas laterais e superficiais para o apoio dos braços. A água corre pelo meio das duas pedras em que nos apoiamos e exatamente onde podemos nos colocar e escorar, ficando então em posição confortável, para toda aquela água passar por cima. O correr dela é forte, mas a queda é baixa. Colocava-me nesse correr, recebendo então uma boa massagem aproveitando bem a oportunidade. E ali, naquele local privilegiado, esquecia-se dos problemas ou das cordas que vamos traçando e tentando nos equilibrar nas cores dessa nossa vida, que vamos pintando e sendo pintados. Consegue¬-se ficar pouco tempo pela friagem. Saí sem me demorar. Vesti as roupas em cima da pedra, todo molhado mesmo. Daqui a pouco seca tudo. Cueca, meia, calça, enfim, tudo que eu ia vestindo ainda com o corpo molhado. Fiquei refletindo sobre o acontecido. Mantinha sempre um sorriso de satisfação. Não conseguia perdê-lo, por justa causa. Estava glorificado. Meu mundo repentinamente tinha se ampliado muito. Falar de Júlio Verne e Charles Dodgson dentro de uma realidade que ninguém conhece!...

Pulei de pedra em pedra. Subi pela linda picada que leva à minha casa. Esbaldava de olhar para as Marias¬-sem-vergonha, reparando as nuanças de suas cores. Elas não são trepadeiras, mas também se alastram muito. Seu nome me Lembra de certas pessoas, seja lá de que signo for, mas que gostam muito de se darem. São charmosamente coloridas e cheirosas, e que sempre as sejam. Do todo um pouco. Também receberem a delicadeza de se dar uma flor, pelo menos... Assim, não ficam frustradas.

Chegando a casa, deixei o casaco e tudo que era demais. Não estava a fim de ficar sozinho. Iria para o centro do Vilarejo, dar uma caminhada ou ia andando para o Cecé e já ficava lá para o almoço. Bom. Até certo trecho do caminho o sentido era o mesmo. Eu decidiria qual o lugar ir, na hora oportuna do caminhar.

Estou no momento, e já faz cinco anos, uma pessoa sozinha no meu viver. Por ter essa ideia como opção. Sozinho que se desbrava o mundo. Sou namorador, por que sou rueiro e gosto dos bares e adoro beijar na boca. Não deixo as minhas namoradas ficarem mais de dois dias aqui em casa. Não é sugerido que se acostume com a ideia de morar eternamente, mas somente enquanto somos bem felizes. No susto. Que seja num tempo muito curto, pois também não quero acostumar com almoços e jantares feitos por outrem. Meu último casamento foi muito conturbado. Foram dezessete anos de muita paixão, sofrimento, angústias e felicidades também. Esses acontecimentos que estão ocorrendo comigo vieram numa hora bem propícia. Pois não faz muito tempo que me separei. Quem souber usar bem uma borracha de apagar sobre as eventualidades não muito boas da vida, que podem e devem ser apagadas tende a ser mais feliz. Já têm outras casualidades que não podem e nem devem ser esquecidas, pois isso faria perder a experiência de uma vida. Quando for o caso usem essa borracha sem dó nem pena. Fiquemos desinibidos. Abramos o nosso peito, caminhemos a olhar sempre com firmeza. Desde que, controlemos nossos pecados capitais e eliminemos de nossas vidas os mortais!... O apagador funciona bem.

A manhã daquela estação estava muito gostosa. Os pés de tangerina estavam carregados de frutos. Andava pelo caminho pegando uma e outra e saboreando-as com muito prazer. Estava vivendo uns momentos muito especiais na vida. Aquele meio-sorriso, a representar sempre meu estado de espírito, não saía de minha fisionomia. Na hora de decidir para onde iria, escolhi o Cecé. É uma pessoa pura o bastante para meu momento. Deparei logo com seu pai e perguntei por ele. Gritou... Em seguida, Marciano apareceu.

¬— Oi, Anjo!

¬— E aí, Cecé, tudo bem? Vou lhe atrapalhar chegando agora, tão cedo?

¬— Nããão. Que isso Anjo! Cê é sempre bem vindo.

— Estava na horta?

— Não. Estava cuidando dos porcos e dos coelhos.

— Não estou te atrapalhando mesmo não, Marciano?

— Vombora! Vamos sentar lencasa pra gente bater um papinho. To ti achando meio cabriado. Ce num é assim. Brigô côa namorada? Fez esta pergunta sorrindo.

— Não. Estou na minha. Estou feliz, e você? Sua filha tem vindo aqui?

— Rapá, nem ticonto. Lúcia voutô pra casa, rapaz!

Havia acontecido qualquer coisa entre eles que provocou a separação. O problema tinha se resolvido pelo que eu estava percebendo.

— Está feliz não é moleque? E vai dar certo?

— Nuncei né Anjo. Vamu vê. Tem coisa que só Deus sabe. Ce sabe que pra Karlinha é melhó e pro pai também, né Anjo? Ele tava morrendo sem a sua netinha aqui na casa. Ce sabe. Acho que vô gosta mais que pai. Inda mais ele. Cê nos conhece, né Anjo? Karlinha havia de ter três anos.

— Foi bom sim, para ele que já é idoso, sentindo mais as desilusões da vida e também para você. Neste período o qual você ficou sozinho colocou umas medonhas aí na sua casa que eu vou te contar. Até lhe roubando, as mulheres estavam. Ou não?...

— He, He. Acho que sim né Anjo?! Falou isso sorrindo com expressão de sem vergonha.

Colocamos a conversa em dia. Ele me levou a ver sua horta e depois jogamos uma partida de sinuca. Almocei e fui andando para o Vilarejo. Eu queria encontrar com o Comandante, mas estava difícil. O “Tchê” quando se enfia dentro do seu sítio e se empenha a fazer aquelas obras malucas! Fica difícil! Obra maluca por ele colocar esqueleto de bicicleta, pneu velho, colher de metal, caco de vidros e o que achar que a sua esposa não vai mais usar e que sirva para complementar o concreto. Para ampliar a casa, vai executando tudo sozinho. Não costumo ir ao seu sítio sem ter certeza que ele esteja por lá, pois se não, é longe para voltar sem o intuito alcançado.

Fui para o Vilarejo. Chico não estava. Fui até o outro bar. Este, o dono não sai nunca a não ser nas sextas-feiras para fazer compras na cidade grande. Acabei o encontrando e jogando umas partidas de sinuca. Depois fui embora. Andava ansioso, pensativo. Vocês imaginam o que representa ver gnomos?

O centro do Vilarejo fica a uns mil e setecentos metros de distância do sítio. É uma caminhada muito prazerosa. A quantidade de fragrâncias naturais que aprecio durante a caminhada é impressionante, e a visão do rio e das matas floridas ao redor, é a coisa mais linda que possa existir.

Naquela tarde preferi ficar em casa. Lendo na varanda, era o que me agradaria. Considero-me uma pessoa fazendo parte integrante da natureza. Deixemos os homens das cidades grandes com seus problemas. Li por mais ou menos umas duas horas seguidas. Entediado, naquele momento, repousei o livro na janela. Firmei o que havia lido ficando absorto na natureza.

Já à noite, não me percebia sono nenhum. Ansioso, somente o som da noite não me apeteceria. Abri uma garrafa de vinho português coloquei um CD do Pink Floyd para escutá-lo, enquanto bebia um vinho especial. Fiquei na espreguiçadeira saboreando tudo com muito gosto, inclusive o prazer do céu estrelado. Estava na expectativa que aparecesse algum visitante, e não deu outra. Escutei uma voz gritando lá de baixo – “Eeeehhh bichinho”!... Desse modo só minha prima se expressava.

— Oi, meu amorziiiinho! Eeentraaaa!... Era ela mesma. Minha prima irmã, filha de um dos irmãos do meu pai. Morava aqui no Vilarejo, sozinha também. Tinha uns dez anos a menos do que eu. Só que no correr da vida, já regulava nossa maturidade. Pessoa parecida comigo. Vive na solidão sem sentir-se só. Toca um violão muito bem, tem uma voz linda para cantar. Um repertório de Bossa Nova, bem escolhido por ela, de acordo com o seu timbre de voz. Alta, bonita, com seus cabelos negros grandes e ondulados, é uma figura forte e tem opinião. Para ela eu tenho certeza que poderia contar o que estava se passando comigo em relação aos gnomos. Mas promessa é promessa, eu não contaria enquanto não houvesse permissão. Se é que um dia haverá.

— Tudo bem? Deu-me dois beijinhos

— Tudo bem. Respondi sorrindo, e falei – pegue uma caneca lá dentro, sente-se aí e beba um vinho aqui comigo. Eu tinha a maior intimidade para falar assim, como se a casa fosse dela também.

— Está vindo de onde?

— Estive na cidade hoje. Tinha dentista. Desci do ônibus lá no Vilarejo. Vanir me falou que você tinha estado lá. Deu saudade e vim lhe ver.

— Foi muito bom! Que bom você ter vindo!

— Você está com uma cara boa!...

— Estou vivendo com uma boa paz interior.

— E aquela sua namorada da Vila?

— Não tenho visto não. Estamos brigados. Mas a gente se encontra.

Bebemos a garrafa de vinho toda. Rimos muito. Batemos diversos papos furados. Falamos sobre nossos amigos do Vilarejo. Perguntei se ela queria dormir aqui em casa; disse que não e foi-se, depois de termos nos divertido bastante. Estava bem frio, fazia uns quinze graus. Coloquei um pulôver para me proteger da sensação térmica que já estava incomodando. Aumentei o som e abri outra garrafa de vinho. Precisava refletir. Estava sem sono e eufórico devido à situação inusitada que estava acontecendo comigo.

Como seria viver trezentos anos? Ter quantidades de recordações boas, como também as menos aprazíveis. Algumas, com certeza, até ruins. Lembranças de duzentos e cinquenta anos atrás ou trezentos anos! A memória de nossos computadores perde. Como pode, os camaradinhas sumirem repentinamente da nossa frente? O sexo, parto, gestação, relação familiar, regime político, dos pequeninos, como será? Como conseguem sobreviver perante a fauna selvagem, sendo eles daquele tamanho? É, vai ser difícil dormir, e acho que não é só por hoje não.

Ah, que bom! Tinha parado um carro lá em baixo no portão e estava buzinando.

— Bem chegado! Gritei. Desci para ver quem era. A pessoa foi encostar o carro e ao dar marcha à ré me arrancou um pedaço da cerca do sítio. Toda feita de madeirinha fininha e colorida como um arco íris. Por enquanto, ainda sou heterossexual sem nenhum preconceito, mas que aquela cerca era estranha, isso era. Desceu pelo outro lado do carro. Era a Nina. Eu gostava muito dela, uma pessoa agradabilíssima. Aproveitava bem o Vilarejo.

— Desculpa Ângelo! Desculpa!...

— Oi Nina! Que bom. Chegou numa boa hora.

Abraço apertado e beijos. Enquanto seu cachorro latia.

— Isto não foi nada. Amanhã eu dou um jeito.

— Estou lhe atrapalhando? Encontrei com a sua prima e ela me falou que você estava sozinho e bebendo um vinhozinho. Vim participar também!

— Vamos entrar. Vem. Subimos pelo caminho gramado que leva à casa de cima. Subimos pela grama, bem abraçadinhos de forma carinhosa. Eu gostava do jeito muito louco dela, era uma maluquice-beleza, ingênua, pura e elétrica. Bebia apenas como uma forma de contestação por viver numa sociedade economicamente falsa e medíocre, pelo que me contara. Tinha uns quarenta e cinco anos. Trabalhava na Justiça da cidade grande e tinha alugado uma casa no Vilarejo. Sua vida era aparentemente tranquila e estável. No momento, estava solteira. Tinha um bom automóvel e um cachorro poodle branco muito bonitinho. Não sei como, mas a poodle só andava em cima do carro. Literalmente em cima do teto. Usava uns sapatinhos nas quatro patas, aderentes, o que com certeza lhe dava mais firmeza, para se equilibrar nas artes de sua dona. Mesmo assim me impressionava, pois a Nina dirigia sem equilíbrio nenhum. Bom. Sentamo-nos na varanda. Servi o vinho, e ela resolveu escolher um som que queria escutar. Sentou depois comigo. Ficamos algum tempo em total silêncio. Eu queria saber quanto ela aguentaria naquele silêncio proposital. Eu a olhava com um discreto sorriso.

— Bem que sua prima falou!... Você está com uma cara boa!

— São seus olhos. Você está muito linda!

— Paaaara Ângelo! Aliás, sábado você parecia um adolescente com aquela menina novinha, hein? Quem era ela?

— Uma menina que estava num bar, amiga de copo. Depois que conversamos um pouco ela perguntou se eu a levaria para dar uma volta de motocicleta, respondi que sim e viemos parar aqui. Mas ela não era tão novinha assim não. Uns vinte e cinco anos. Eu, na realidade, não gosto de menina desta idade. Tem assuntos muito diferentes. Mas tem um aparte nisso muito bom, sem entrar nos detalhes. Não resta dúvida! Eu estaria pecando, se não falasse nesse parecer. Mas você sabe que eu não deixo ninguém ficar mais de dois dias aqui em casa, podemos nos acostumar e eu não estou nessa de casar não. Nem gosto que deixe sandálias, nem nenhuma roupa íntima, para não marcar o território. Desconfio do motivo. Ela riu muito e falou que eu não valia nada. – Está gostando de ter alugado a casa aqui? Perguntei.

Muito. Este lugar é especial. A turma é boa, eu me divirto, bebo e curto. As pessoas daqui já me conheceram assim mesmo e na realidade nem sabem quem eu sou. Eu estou é adorando! Para eles, sou uma pessoa que só bebe bastante, ri muito e não liga de gastar dinheiro.

Nina, este lugar é formidável! Não existe ninguém que desconfiemos não ser um bom elemento. É o que considero hoje o maior quesito para uma boa qualidade de vida. Conviver num local com segurança quase total. E é por isso que estou aqui. A totalidade das pessoas nos é confiável.

Eu queria casar com uma pessoa assim igual a você, calminho.

Pra quê, menina! A vida de solteiro é muito boa. Não se precisa casar não. Isso é insegurança de antigamente. Bom! Para procriar... É mais seguro. Já tenho filhos de trinta e cinco anos, outro com trinta, com vidas próprias. Saio à noite e dependendo durmo onde estiver. Se quiser, não tenho que chegar no dia seguinte também, se bom estiver, durmo em qualquer lugar pelo tempo que quiser! Não ter uma pessoa para me buzinar seus incômodos em meus ouvidos quando chego a casa é muito bom. Conheço belas mulheres, solteiras que nem eu. Para nos dar alegria... Tomarmos banhos de bares juntos, ou melhor, irmos a bares para conversar ou galantear. Ou também, já que falei em banho, qualquer outro banho e de preferência num bom motel, para que o banho seja do champagne, do vinho bom, de mel, de cereja em calda, banhos de chocolates!... Para que casar na minha idade, meu Deus do céu!...

É mesmo, não é?

Nina ficou até mais tarde. Conversamos sobre outros assuntos mais sérios. Falamos sobre a falência dos regimes e o costume da desonestidade política atual. Até sobre psicologia, a má qualidade do que era ensinado e do ensino público e privado. Conversamos sobre a falência da saúde pública, sobre como era difícil você adquirir sua subjetividade diante das limitações e pressões que o biopoder e a sociedade nos impõem. A morosidade da justiça. Os pobres dos pobres. Eu já estava cansado. Mas foi ótimo.



9

Na manhã seguinte, levantei umas cinco e meia. Estava escuro ainda e frio, bem frio. Resolvi tomar um banho gelado. Gosto de tomar banho frio. Deixei para tirar a roupa de dormir no banheiro. Levei comigo as peças que iria vestir. Quando entrei no Box, achei que não sairia água do chuveiro de tanto frio que fazia. Pensei na água estar congelada. Nada! Já entro debaixo, meto a cara e relaxo. É costume adquirido. Há muitos anos me banho com água fria. Desde quando velejava. Tinha um barco Laser que normalmente vira e derruba seu comandante no mar. Eu nunca soube velejar muito bem e regularmente a água do mar estava bem fria. Daí para frente, meu banho passou a ser com a água na temperatura normal, seja lá em que local eu estiver, para eriçar a sensibilidade. Mas o banho daquele dia estava danado. Quando você fecha o chuveiro o banheiro está todo embaçado. Era como se tivesse tomado um banho fervendo. Quando nos enxugamos tudo normaliza outra vez. É muito bom logo cedo se banhar com a água na temperatura natural. Coloquei uma roupa adequada, como esperava que fosse a surpresa do dia. Na cozinha, fiz café, torrei três pães com manteiga, açúcar e canela neles. Reconheço que às vezes eu tenho um gosto exótico. Compus a mesa como se família tivesse e degustei os pães com mais prazer que em um dia comum. Eu estava feliz e receoso ou apreensivo. Depois, resolvi molhar o jardim. Quase precisava de lanterna ainda. Era grande o jardim. Quando terminei o dia já estava nascendo. Desci até a estrada e fui dar uma caminhada. Achei que ainda era muito cedo para ir para a temível floresta transpassada pelo rio amansado. Andei pela estradinha encantadora que me leva ao sítio. Saboreei as tangerinas maduras que encontrava nas tangerineiras da beira do caminho. Jorginho estava passando para ir à sua roça e conversamos um pouco. Os roceiros são de pouco falar, então a conversa é rápida. As nuvens estavam descendo. Sabia que em pouco tempo esfriaria mais ainda e eu não enxergaria mais toda aquela graça que tinha para avistar. O nevoeiro é forte, como também o frio, que congela a relação entre pessoas. Eu estava bem agasalhado. Precisava estar bem agasalhado. Dava ainda para ver o rio enfumaçado lá embaixo. Parecia um diamante rolando, com suas brancas espumas que se misturavam a nuvens baixas. E, olhar um diamante daquele tamanho com aquele tempo anuviado suaviza a alma! Só não vê isso quem não quer ter poesia dentro do seu coração. As tangerinas estavam azedas, muito azedas, mas uma delícia, pois eram das autênticas aquelas mexericas. Devo ter andado uns setecentos metros à frente para então pegar o rumo da floresta. Cheguei à nossa pedra. Fiquei um pouco em pé fazendo exercícios leves, tipo de taichichuan, e isso fazia parte para aquecer aquele momento. Escutei um barulho na floresta que poderiam ser eles. Não era. Talvez um coelho ou um porquinho da índia. Pensei que, se deparassem com um bicho daqueles do mato, deveriam levar o maior susto. Em relação ao tamanho deles, aqueles bichos seriam enormes. Sentei na pedra e fiquei olhando meu brilhante, que era o correr do rio... Que lindo, que lindo!...

— Bom dia!

— Bom dia, meus camaradas. Vocês não acham que vão ser engolidos vivos quando deparam com cobras, coelhos ou tatus, por estes matos adentro? E as lontras, que são enormes? Eles riram muito, não sei se pela pergunta ou pelo jeito de eu já ir perguntando coisas assim, e assim...

— Não. Se sentirmos perigo, explodimos e soltamos brilhos, aí, eles é que levam susto.

— Que coisa! Explodem né?

— Você já teve oportunidade de ver nossas explosões e o que podemos deixar de rastros com o evento e isso assusta mais aos animais do que a vocês. Mas a interação deles conosco é maior do que a nossa com vocês, por incrível que possa parecer. Mudando de assunto. Já tendo mudado. Vamos fazer uma pequena viagem? Hein, Ângelo?

— Viagem? Mas que viagem é esta que me sugere? Sair por aí pelo mundo? Preciso de maiores explicações para que possa dar uma resposta convicta.

— É sim, sair por um mundo que você ainda não conhece. Nós vamos lhe dar um líquido que é preparado por nós, com plantas da floresta. Verdadeiros elixires mágicos do poder, mas são naturais. O composto lhe trará reações adversas em sua mente. Nós precisamos estudar seu comportamento em situações antagônicas para que possamos nos preparar para certas circunstâncias. Isto vai ser importante durante as “viagens astrais” que queremos que você faça conosco. Você vai gostar muito deste evento.

— Será que vale a pena? É preciso isso mesmo?

— Preste atenção no seu instinto, pois não apercebemos que sua sensibilidade seja comum. Portanto, seu instinto é quem vai dizer se você deve confiar, ou não, em nós. Ou em qualquer dos momentos da vida em que precise usar de sua sensibilidade. O que veio fazer aqui em baixo, se não confia em nós? Perde logo esse negócio de remanchar. Isso não é bom para você, pois pode lhe levar a indolência. A vida é no período certo. Tome, beba logo esse líquido de plantas do poder e se acomode nesta pedra com segurança para que faça uma viagem tranquila.

— Me dê aqui.

Virei o copo. Havia nele um líquido, cor de terra, com gosto diferente de tudo que já havia experimentado. Olhei para eles e estavam com certo sorriso. Fiz careta daquele gosto. Aí sim, riram com graça e espontaneidade. Pensei como eu era maluco de acreditar nos camaradinhas. Estavam fazendo o que queriam de mim e imediatamente após nos ter conhecido. Mas no fundo da alma eu estava tranquilo.

— Agora é o seguinte: fique um pouco aí nas suas divagações e esqueça que estamos aqui. Se sentir efeitos estranhos em seu raciocínio, não precisa ficar receoso, é a reação da planta sagrada. Daqui a pouco nos falamos para então começar a brincadeira. Não se intimide ok? Ah! Não é sugerido levantar, ou rolar. O rio é perigoso para quem cair dentro dele despreparado para o tombo. Este elixir só lhe fará bem. Isto é só para que possamos estudálo. Com suas reações liberadas você mostrará mais de si próprio. É para percebermos como está seu inconsciente. Queremos saber se existe algum problema mais forte influenciando seu interior. Deve se aproveitar ao máximo da reação que acontecer com você, e acaso perceba que esteja saindo do limite, tem aqui um antídoto ao composto, que imediatamente o colocará na sua normalidade. Tá bom? Fique tranquilo.

Recostei na pedra de apoio. Olhei para o rio e para as borboletas que passavam rendilhando. Quando olhei para a mata, já a vi diferente. O verde estava mais aceso. Reparei os pingos das gotas do orvalho pendurados nas folhas. Faziam-se de verdadeiros brilhantes a espera da sua queda inevitável quando a umidade aumentasse. Escutava os sons com timbres diferentes. Os dois conversavam de costas para mim com as pernas caídas para o lado do rio. Eu balançava a cabeça, como que dizendo não. Realmente eu não estava acreditando naquilo tudo que acontecia. Tentava prestar atenção na conversa deles, mas minha atenção era desviada para um raciocínio de meu interesse próprio. Não. Não acreditava no que estava acontecendo comigo naqueles dias. Até achei que estava sendo testado, por sei lá o que, por mistérios... Não é possível! O sentimento de felicidade, a confiança e a sensação que tinha nascido com um propósito diferente, me punha fortalecido. Comecei a pensar no porquê de terem aparecido para mim. Não foi casual. Eles vieram ao meu encontro e não ao encontro de outra pessoa qualquer. Então reparei que meu pensamento começava a se embaraçar completamente. Comecei a ter dúvidas por ter sido o espermatozóide colocado por algum mistério e já vencedor numa corrida, sem intenção. Este vitorioso, afinal de contas, veio a ser eu, num dia do passado e nem havia tempo para treinar. Mas tenho consciência deste dia ter sido qualquer. Por que os outros morreram ou morreriam? Então o nosso desígnio já começa numa disputa de vida ou morte? E se houve realmente morte, foram para o céu ou para academias de dança, de ginástica, militar, de letras, a tentar ser um bobo desmilinguido. Que é isso que estou a pensar? Meu raciocínio estava meio intricado. Eu não me preocupei muito com detalhes, pois já sabia que ia acontecer algo diferente. Não era marinheiro de primeira viagem em reações diferentes, pois já tinha experimentado o “LSD” quando era bem mais novo. Daí em diante: tive a impressão da mata estar pegando fogo! Fiquei pasmo de ver uma borboleta que passava com um político de terno, montado nela e ainda carregava uma bandeira escrita: seus otários. Ri da complexão da coisa. A impressão que tinha agora era a de que uma das nuvens com cara de dragão, ou cachorro bravo, vinha em nossa direção para soprar fogo. É, estava realmente meio embaraçado meu raciocínio!

— Oi, vocês ainda estão ai? Está tudo bem com vocês? Cuidado hein? Não sei com o quê, mas tenham cuidado!... Tenho a impressão que vocês dois vão cair dentro do rio. E ri desabutinadamente demonstrando certo lado esquizofrênico.

Naquele momento, Solrac, que era o gnomo mais novo e o primeiro que se apresentou a mim, explodiu deixando um rastro de estrelas multicores enorme, tamanha a velocidade com que saiu. Isto foi uma situação perfeita para o momento. Mas quase saí correndo do susto. Não saí, mas fiquei sério.

Senti uma leve melhora no raciocínio daquele ponto em diante.

— Por que ele saiu assim?

— Pressentimos algumas presenças de “elementares” errantes querendo se aproveitar do seu momento vulnerável. Fique tranquilo! Ele resolve. Você também resolveria. Está quietinho agora? Deixamos você terminar toda a implicação que havia no seu interior e que deveria colocar para fora durante o efeito do composto, suas perturbações, lembranças, frustrações e pesos, todos a simular formas diversas. Extravasou? Você está muito bem. Nada com uma representatividade mais séria. Vamos levantar devagar. Vai me escutar um pouquinho. Está bom? Vamos levantar devagar e com calma.

Levantei um pouco desequilibrado. Dava para ficar em pé naquela pedra com uma leve inclinação. Passei o olho por tudo, e pelo todo. O dia, o rio, a floresta e o pequenino. Notei tudo estar com uma limpidez incrível. Reparei que na floresta tinha muitas flores entre as folhas verdes. Elas se destacavam numa dimensão, acho que acima, da já linda, “terceira”. O rio virou um brilhante inigualável. O pequenino gnomo estava corado, saudável, muito mais que normalmente sempre o era. Minha pele estava macia. Eu tinha certeza que meu aspecto era ótimo. Meu sentimento interior tornou-se um espírito quase santo. Eu me sentia pleno. Não faltava absolutamente nada para considerar-me uma pessoa feliz. Que lindo! Que maravilha! Fantástico! Esse mundo é extraordinário, principalmente quando acontecem situações que nos fazem sentirmo-nos vivos e passamos a crer nos seus mistérios. Calmamente ele me pediu para sentar outra vez e que eu relaxasse bem o corpo. Entregou-me um saquinho, tipo um amuleto e pediu que colocasse em um dos meus bolsos. Estalou os dedos e ao mesmo tempo exclamou meu nome de maneira diferente:

— Ângelo!

Desta alerta dada pelo gnomo, veio à sensação de tornar-me etéreo. O pequenino ia ao meu lado, puxando-me pela mão e me rogando calma. Deslocávamo-nos no ar, flutuando. Eu estava leve, completamente leve como o ar em que estávamos! Então, levou-me para um interstício bem claro, acima da água do rio no meio do poço e me apontou em certa direção. O que eu vi quando olhei foram dois gnomos, um parecido com o amigo dele, o Solrac, ainda mais novo que este. Estava virado de frente para mim, o outro estava de costas, então eu só percebia que deveria ser um gnomo feminino pelos seus cabelos longos, e, os dois, estavam se desmanchando, que nem pintura de Salvador Dali. Conforme iam se desordenando, apareciam muitas luzes brilhantes em seus lugares. Eram pontos coloridos, tipo estrelinhas de todas as cores e com muitas tonalidades. Piscavam e corriam em círculos. Entrelaçavam-se em ondas, fazendo movimentos frenéticos. Obedeciam a um parâmetro de um quadrado imaginário, formado por estrelas maiores azuis. Repentinamente paravam e ficavam ali fazendo movimentos lentos e leves. Derramavam centelhas prateadas para dentro do rio, num esplendor, como uma chuva intensa, para finalmente caírem dentro do rio. Vi os dois a se banharem e nadarem rindo um para o outro, coniventes, felizes. E, no momento seguinte, eu já estava na pedra outra vez. Olégna, na sua magia, foi tão rápido que não me deu tempo para perceber o que tinha acontecido. E então me perguntava: gostou do que lhe aconteceu? Não sabia responder. Vi a beleza em sua plenitude. Estava completamente estupefato. E então comecei a sorrir sem graça por naquele momento não poder ter a reação que eu achava deveria ter, para demonstrar a beleza real que tinha avistado. Mirando seu rosto, ele também irradiava felicidade, talvez pelo prazer sentido de ter visto minha reação numa formação tão tranquila. Então me falou:

— Sabe o que é aquilo que acabou de ver? Tem ideia? Foram dois jovens gnomos brincando com suas intimidades. Peraltices do namorisco!... Amor de peraltice, amor de jovens, sem nenhum compromisso, sem nenhuma sequela. Assim, com nossos poderes, aprendemos também esta brincadeira de amar. Aquele que não há propósito. Sem maldade, mas que nos proporcionam uma sensação deliciosa e segura para brincar de ter prazer. Sem deixar nenhuma paixão. Sem vilipendiar.

Sentado na pedra, encostei a cabeça na outra pedra de apoio; fechei os olhos e só sentia uma paz muito grande na minha essência. Por alguns momentos, fiquei assim, a vagar por uma inconsciência de paz e total morbidez. Foi quando senti umas pancadas na minha perna. Abrindo os olhos, os dois me estendiam a mão em menção a me cumprimentarem. Peguei suas mãos, ou melhor, seus dedinhos e os saldei. Explodiram deixando as mesmas poeiras prateadas que tinha visto sair do círculo encantado. Fiquei por ali comparando a beleza do que tinha acabado de ver com o momento do clímax quando praticava o ato sexual com as mulheres que amei. Deveria se apresentar mais ou menos a mesma representação quando do êxtase em se guardando as devidas proporções, que nem eu sei quais são. Ninguém até hoje viu para me dizer se saíam estrelinhas. Mas se nós dois sentíamos a mesma sensação juntos, estaria sacramentado o perfeito amor de alguns segundos de muita satisfação. E, com certeza, muitas estrelinhas devem ter saído durante algumas vezes. Ou ainda, pelo menos, a nossa aura estivesse naquele momento com um brilho esplendoroso. Assim penso eu do ato do amor. Quantos brilhos... Quanto prazer. Quanto olhar de amores complacentes deveu-se ter tido depois destes atos. Mas deixava paixão. Deixava consequências.

Por aqueles momentos, estava muito bem. Fisicamente bem e com o raciocínio normal. Normal, levando-se em conta que o lado emocional não tinha a mínima condição de ser o mesmo que o anterior a todos estes fatos. Nós somos muito fortes, mas bem limitados. O que eu posso dizer é que, emocionalmente, nesse momento, provavelmente eu precisasse de uma boa análise. E principalmente de um bom sofá de analistas.

Tinha acabado de colocar a roupa íntima, pois tomei um banho de rio nu. É um costume que tenho, porque daqui a pouco, acredito não se poderá mais ter este prazer em nenhum local. E assim me sinto o próprio índio e com esta atitude me sinto mais livre, com a alma lavada — e assim é preciso — em pleno século vinte e um. De repente, voltaram os dois gnomos. Fui colocando o resto da roupa e falando:

— Vocês só andam juntos?

— Não, mas foi o Solrac que nos chamou atenção sobre a valência de aproveitarmo-nos da sua pessoa. E foi ele quem primeiro se comunicou com você na hora que se deu como justa. Lembra-se? Durante todo o tempo que decidíamos que você seria o nosso porta-voz, quem o espreitava, para tirar conclusões de seres a pessoa certa, foi sempre ele. É o responsável por esta empreitada a qual você é o principal. Você nem imagina como ele lhe conhece a fundo.

No entender deles, aquele gnomo seria o responsável por todo relacionamento que existisse entre nós. E, muito mais ainda, por que se não der certo, ele se sentirá envergonhado simplesmente pela má escolha que teria feito. Mas não haveria possibilidade de erros. Eram muito poderosos.

— Solrac fala português?

— Falo. Falo sim.

— Não se pronunciou até então? Somente no dia que o conheci, e ainda com o susto que nós levamos você não conseguiu verbalizar de maneira que eu o entendesse. Notei você sinalizando que eu esperasse, foi a única coisa que compreendi.

— A princípio era mais fácil só um falar, para não ficar ainda mais embaraçado. Desculpa-me, mas vou mudar de assunto, pois preciso lhe fazer uma proposta, já que agora nós todos falamos. Aqui, neste local, passam poucas pessoas, mas de vez enquanto passa uma ou outra. Então amanhã, você é nosso convidado para passar o dia conosco, lá, no Poço Quadrado, pois é mais difícil de aparecer alguém. Poderíamos conversar o dia todo com tranquilidade. Não está sentindo falta disso não? Pois eu acharia interessante termos um dia inteiro ao nosso dispor. Para não só conversarmos sério, como, para fazermos algumas brincadeiras interessantes as quais você nem conhece. Topa?

— Lógico que aceito esta proposta. Só que amanhã é dia do Wálter trabalhar no sítio. É o meu ajudante, como só vai lá para executar seus afazeres uma vez por semana, gostaria de estar com ele para traçarmos e cumprirmos as tarefas do dia; além disso, algumas vezes, são necessárias duas pessoas para fazerem um só serviço. Poderia este nosso encontro ser depois de amanhã?

— Pode. Pode sim. Leva alguma coisa que goste para comer. Assim a fome não o atrapalhará. Vamos tentar transferir compromissos que estão marcados para depois de amanhã. Senão damos outro jeito. Está marcado?

— Vai ser lá que vão me mostrar a entrada para o mundo de vocês?

— Não nos faça de besta não, hein? Tudo deve ser no tempo certo.

— Por que corou?

— Até depois de amanhã. Não morra de saudades.

— Tchau, antes que explodam! Até mais ver! Saíram andando pela floresta. Vai entender esses pequeninos interessantes. Têm vezes que explodem ou então saem calmamente andando.

Este livro continua

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Esta foto foi tirada no comecinho de 2009. Eu tinha acabado de fazer 60 anos. A vida me fez sorrir assim. Não quer dizer que não tenha passado por absolutamente nada na vida, acho que muito pelo contrário, por eu ter passado por muitas situações inesperadas aprendi a ser este sorriso.
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segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

My sweet lord - George Harrison

Geoge Harrison era o Beatles que eu mais simpatizava, talvez por sua simplicidade e sua simpatia pelo hinduismo. E é com alegria que coloco em meu blog esta homenagem.

Óleo spbre tela - Tibuto a George Harrison - de Carlos Ângelo

Este quadro eu vendi para um norueguês, muito bem vendido, deve estar lindo seja lá onde tenha colocado.

Crônicas escritas por mim - Um sonho desagradável

Quando eu era criança. E quando, acho eu, estava com febre. Por algum motivo, sonhava com umas bolas coloridas de diversos tamanhos e todas flutuando. As maiores iam engolindo as bolas menores. Com o resultado dessa associação iam ficando maiores ainda. Aquele sonho me fazia tão mal, que a impressão que tenho é que tentava sair correndo pro banheiro, mas não saía do lugar. Papai acordava, porque quando sonhava com isso, estava sempre dormindo com eles na cama. Por isso tenho a impressão de que tinha febre. Então ele falava: o que foi meu filho, que foi meu filhinho. Deita aqui. Deita aqui juntinho de papai. Eu então deitava. Ele ficava me acariciando e cantando algumas cantigas de ninar. Bem baixinho. Eu adormecia de novo. Mas nunca mais me esquecia do que tinha sonhado. E não gostava daquele sonho. Foram pelo menos duas ou três vezes durante a infância que eu havia sonhado exatamente com aquele mesmo sonho. Tenho a impressão que já associava aquele sonho com as camadas sociais.

Um desenho a lapis de cor de Carlos Ângelo

Eu quase sempre faço um desenho para depois pintar o quadro. Este desenho homenageia um sêr com um orgão desproporcional que simboliza a quantidade de crianças que têm em nossas cidades.

Vídeo - Asteroid, Android - De Vitor Araujo, um senhor pianista

Vitor Araújo é um bom pianista, além disso é irreverente e inovador. Eu adoro esta audácia.

domingo, 21 de dezembro de 2008

O Carrinho de criança - Mal desenhado por mim

Uma crônica do que eu penso de uma passagem da minha infância

Comecei a pensar, então, num carrinho de criança, que minha mãe tinha para que me movimentasse, quando e onde ela quisesse. Todo de ferro e pintado de vermelho. Na parte de trás da cadeirinha de lona, tinha o gancho único pelo qual se era empurrado. A criança ficava sentada ao rés do chão e com os pés apoiados em dois suportes, na posição de um piloto de fórmula um. . O engraçado é que eu nunca me lembro dela me conduzindo. Só meu irmão, o maiorzinho do que eu. Este, por sinal me adorava, e me adora. Devia sair me empurrando no carrinho e perguntando a todos se já teriam visto como eu era bonitinho e que criança mais boazinha. Fora as corridas apavorantes que dava e os ziguezagues que fazia, e os finos do meio fio, e todo tipo de brincadeira que uma criança, inteligente, seja capaz de fazer e ter o prazer de ver, seu ser querido e dependente, apavorado, até para poder salvá-lo, do que nunca aconteceu.

A Dança do Balé - Óleo sobre tela - Carlos Ângelo

Fotos de quase todos os meus amigos

Eu coloco estas fotos com muito orgulho e prazer

A Cidade - Óleo sobre tela